Thursday, October 26, 2006
Odeon
Há quem tenha casa com vista para o mar, para um rio, para um jardim… Eu não. Adoro o meu lar, mas das janelas do meu primeiro andar só tenho várias perspectivas de uma velha rua de Cacilhas; pululam habituações antigas, umas quase decrépitas e outras restauradas às três pancadas, uma mercearia de bairro, a típica calçada portuguesa, mas a obra-prima está atrás da janela da sala de estar. É dela que contemplo o Odeon, um café de esquina muito especial.
Este Odeon tem um único proprietário e funcionário: o sô Zé. Está aberto 365 dias por ano, das oito e tal da manhã às onze e picos da noite. O pessoal, isto é, o sô Zé, não fecha para descanso nem para balanço ou férias. Fechar, só mesmo em caso de doença que inspire muitos cuidados, porque até as gripes e outras maleitas são curadas atrás do balcão. A esplanada é composta apenas por seis ou sete cadeiras e três mesas, duas das quais estão vandalizadas com buracos e queimaduras. O toldo que vislumbro da minha janela tem escrito snack bar; do outro lado apresenta-se como pastelaria. Ilusões de grandeza! Este Odeon não é uma coisa nem outra, é um cafézito aparentemente tristonho e desmazelado cuja mais valia é o seu património humano, os fregueses indefectíveis! No pico do Verão e debaixo de um Sol escaldante ou, mais recentemente, numa noite fria e sob uma carga diluviana, o Odeon tem clientes que não arredam pé. E como se isso não fosse o suficiente, depois do encerramento são capazes de abancar ali perto até à uma ou duas da manhã. Muitos deles seguem o exemplo do patrão: 365 dias por anos, das oito e…
Aquilo não é um café, é uma sala de estar, e como tal os fregueses tomam certam liberdades que noutros sítios é impraticável. Fuma-se (e vende-se) haxixe à frente de toda a gente, inclusive das crianças, que, tal como eu, saem dali perfumadas; (algum d)o pessoal da Telepizza sabe que se quiser um cigarrinho para rir só tem de passar pelo sô Zé. Os motards mais expeditos nem precisam de se apear, esticam o braço para apanhar o cigarro já feito e enrolado e ‘tá a andar de mota!
É frequente os Malrboros e os SGs esgotarem, o Odeon não tem (espaço para) máquina vendedora de tabaco, mas o fornecimento de filtros, isqueiros e mortalhas está garantido. Mortalhas, não! Papel para o rebuçado, como uma das clientes tem a gentileza de pedir ao balcão.
Jogar a dinheiro é outra das actividades praticadas neste humilde estabelecimento. Todavia, não se apostam grandes importâncias. É de bom tom não fazer concorrência aos jogos da Santa Casa, e o sô Zé faz sempre o favor de trocar notas por moedas para o jogo. Com esta animação à porta de casa, pergunto-me se vale a pena ir ao Casino de Lisboa.
A cerveja está para o Odeon como o bife está para a Portugália, é o best seller da casa! De quando em quando, a Sagres e Super Bock patrocinam uns desaguisados entre a rapaziada. O que vale é que o povo é sereno e no dia seguinte já se brinda, com litradas de cerveja, à paz restabelecida.
Há dias, em conversa com o sô Zé, descobri que antes de ser taberneiro, perdão, empresário em nome individual, este senhor vendeu tecidos na baixa de Lisboa - agora é a minha vez de fazer corte e costura! Orgulha-se de ter lançado a moda das camisas de flanela para dormir; disse-me que antigamente só se usava o algodão para este tipo de roupa. Boa, sô Zé! E mais, também foi um dos pioneiros na moda das calças à boca de sino. Ai, sô Zé… Isso é que não!
Todos os anos, em meados de Fevereiro, o Odeon é tema de conversa na reunião de condóminos. Discute-se o alarido que se passa lá em baixo; compara-se o café ao Casal Ventoso; chega-se à conclusão de que as raparigas que lá param são tão ou mais ordinárias do que eles; criticam todos os clientes… Não sou assíduo do Odeon, mas detesto que um grupo de empertigados que mal conheço opine sobre os meus gostos. Talvez por isso alguns vizinhos me tratem como pária. Sinceramente, não estou minimamente preocupado. Quando não me apetece andar muito, só tenho de dar 30 passos, bem contados, desde a entrada do meu prédio para chegar ao Odeon; lá, nunca fui maltratado e tanto o café como o descafeínado custam apenas 40 cêntimos, uma pechincha; já dei algumas gargalhadas à conta das situações que assisti…
O Odeon de Lisboa encerrou a carreira a exibir filmes pornográficos, espero que o de Cacilhas tenha melhor sorte.
Tuesday, October 03, 2006
Um desejo chamado eléctrico
O fim-de-semana é sinónimo de descanso, no entanto, na sexta-feira à noite, prenúncio de folga, senti-me derreado por causa do stress no trabalho, não pelo excesso do mesmo, mas antes pelos tempos de instabilidade que se vivem e adivinham. Diz-se que o melhor remédio é viver um dia de cada vez, por isso, nestes dias de pausa decidi entregar-me ao dolce fare niente.
Dito e feito! Dormi até tarde, vegetei diante da televisão e quando me senti suficientemente desperto, apanhei o barco para Lisboa.
No Cais do Sodré, no bar quiosque do terminal da Carris, não dispenso o pequeno copo de café de saco. É fraco, mas o sabor e o aroma são deliciosos, além disso, custa apenas 45 cêntimos. Os mais afoitos podem pedir o café com cheirinho que não pagam mais por isso. Dez minutos depois, dou por mim a passar de raspão pela feira da ladra enquanto procuro a travessa do Zagalo. É lá, no espaço Novesfora, que a minha colega Anabela, expõe e vende os seus lavores. Trouxe um pequeno mapa, mas o meu sentido de (des)orientação é à prova de croquis, guias e bússolas, pelo que tive de calcorrear as ruas e travessas circundantes até encontrar a dita cuja.
Gostei dos trabalhos da prendada Anabela e das suas colegas artesãs. É pena que a maioria da produção seja “coisa de gajas”: alfinetes, pregradeiras, malas, malinhas, colares, pulseiras... Porque não fazem elas coisas para gajos?
Depois da visita, atravessei o mar de quiquilharias da feira da ladra, passei pela Igreja de S. Vicente de Fora e apanhei o eléctrico para o Martim Moniz; o 28. Eu sei que é cliché, falta de originalidade, lugar-comum, coisa batida dizer que se gosta de viajar de eléctrico, mas não consigo resistir a esta afirmação. Adoro, adoro, adoro! Adoro a cor, os bancos duros, os solavancos... Sempre que ponho os pés na capital, arranjo forma de encaixar uma volta de eléctrico no meu percurso; do Rossio à Graça, do Cais do Sodré ao Terreiro do Paço, de S. Vicente de Fora ao Martim Moniz, etc. Os utentes deste veículo são sui generis. Só ficam de foram os apressados, porque de resto entram trabalhadores, estudantes, nostálgicos e magotes de turistas… para alegria dos carteiristas! No entanto, estes têm que se haver com os reformados, que já os conhecem de gingeira e assim que lhes põem a vista em cima, piscam os olhos para os passageiros e começam a pigarrear. Os mais destemidos não refream a língua e falam para a plateia em alto e bom som: - Cuidado com as carteiras!; - Eles estão aí!
O ranger das estruturas de madeira e dos bancos compõe o resto da banda sonora. Por vezes, até parece que a composição estrebucha com os carris e que se vai desfazer a qualquer instante… Uma sensação reforçada nas curvas descendentes sempre que o eléctrico apanha alguma velocidade. É a montanha-russa dos alfacinhas!
Este espectáculo abarca vários sentidos, mas quando entro nele, desligo-me de tudo e de todos – excepto da carteira! Deixo os problemas para trás e aprecio a viagem.
Dito e feito! Dormi até tarde, vegetei diante da televisão e quando me senti suficientemente desperto, apanhei o barco para Lisboa.
No Cais do Sodré, no bar quiosque do terminal da Carris, não dispenso o pequeno copo de café de saco. É fraco, mas o sabor e o aroma são deliciosos, além disso, custa apenas 45 cêntimos. Os mais afoitos podem pedir o café com cheirinho que não pagam mais por isso. Dez minutos depois, dou por mim a passar de raspão pela feira da ladra enquanto procuro a travessa do Zagalo. É lá, no espaço Novesfora, que a minha colega Anabela, expõe e vende os seus lavores. Trouxe um pequeno mapa, mas o meu sentido de (des)orientação é à prova de croquis, guias e bússolas, pelo que tive de calcorrear as ruas e travessas circundantes até encontrar a dita cuja.
Gostei dos trabalhos da prendada Anabela e das suas colegas artesãs. É pena que a maioria da produção seja “coisa de gajas”: alfinetes, pregradeiras, malas, malinhas, colares, pulseiras... Porque não fazem elas coisas para gajos?
Depois da visita, atravessei o mar de quiquilharias da feira da ladra, passei pela Igreja de S. Vicente de Fora e apanhei o eléctrico para o Martim Moniz; o 28. Eu sei que é cliché, falta de originalidade, lugar-comum, coisa batida dizer que se gosta de viajar de eléctrico, mas não consigo resistir a esta afirmação. Adoro, adoro, adoro! Adoro a cor, os bancos duros, os solavancos... Sempre que ponho os pés na capital, arranjo forma de encaixar uma volta de eléctrico no meu percurso; do Rossio à Graça, do Cais do Sodré ao Terreiro do Paço, de S. Vicente de Fora ao Martim Moniz, etc. Os utentes deste veículo são sui generis. Só ficam de foram os apressados, porque de resto entram trabalhadores, estudantes, nostálgicos e magotes de turistas… para alegria dos carteiristas! No entanto, estes têm que se haver com os reformados, que já os conhecem de gingeira e assim que lhes põem a vista em cima, piscam os olhos para os passageiros e começam a pigarrear. Os mais destemidos não refream a língua e falam para a plateia em alto e bom som: - Cuidado com as carteiras!; - Eles estão aí!
O ranger das estruturas de madeira e dos bancos compõe o resto da banda sonora. Por vezes, até parece que a composição estrebucha com os carris e que se vai desfazer a qualquer instante… Uma sensação reforçada nas curvas descendentes sempre que o eléctrico apanha alguma velocidade. É a montanha-russa dos alfacinhas!
Este espectáculo abarca vários sentidos, mas quando entro nele, desligo-me de tudo e de todos – excepto da carteira! Deixo os problemas para trás e aprecio a viagem.
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